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Projecto Para Um Mundo Sem Crueldade

Reprogramar os Predadores

adult lion and young antelope

«E o lobo habitará com o cordeiro e o leopardo deitar-se-á com o cabrito, o vitelo e o jovem leão e o animal de engorda juntos e uma criancinha os guiará.»
Isaías 11:6

«A quantidade total de sofrimento por ano no mundo natural está para lá de toda a contemplação
decente. Durante o minuto que me leva a compor esta frase, milhares de animais são comidos vivos,
outros correm pelas suas vidas, a gemer de medo, outros são lentamente devorados por dentro por
parasitas vorazes, milhares de todos os tipos morrem de fome, sede e doença. Tem de ser assim.»

Richard Dawkins
River Out of Eden (1995)

O Problema da Predação

Uma biosfera sem sofrimento é tecnicamente viável. Em princípio, a ciência pode produzir um mundo livre de crueldade, no qual não haja a assinatura molecular da experiência desagradável. Não só o mundo vivo pode sustentar a vida humana baseada em gradientes geneticamente pré-programados de bem-estar humano. Se levado plenamente a cabo, o projecto abolicionista implica a reconcepção de ecossistemas, a imunocontracepção, nanorobotas* marinhos, a rescrita do genoma dos vertebrados, e o controlo do crescimento exponencial dos recursos computacionais para gerir um ecossistema global compassivo. Em última análise é uma escolha ética os agentes morais inteligentes optarem ou não por criar tal mundo — ou, ao invés, exprimir os preconceitos do nosso status quo natural e perpetuar indefinidamente a biologia do sofrimento.

Esta visão aparentemente utopista não resulta de uma nova teoria exótica. O projecto abolicionista segue-se de uma maneira bastante directa da aplicação de uma ética utilitarista clássica e da biotecnologia avançada. Mais controversamente, o projecto abolicionista é a expressão científica daquilo a que Gautama Buda aspirava há cerca de 2500 anos: «Que todos os que têm vida se possam libertar do sofrimento». Provisoriamente, suponhamos que inalteradas as restantes condições, um mundo sem crueldade é eticamente desejável, ou seja, seria ideal se não houvesse dor física ou emocional [involuntária]. À medida que a nossa tecnologia amadurece, algumas escolhas difíceis são eticamente inevitáveis se há que alguma vez fazer passar à prática estes sentimentos nobres.

Primeiro, um mundo sem crueldade implica uma transição para o veganismo global. Realistamente, o veganismo global não virá apenas ou sobretudo por via da persuasão moral em qualquer calendário plausível. Tal transição importante só pode ocorrer depois do advento da produção em massa de carne artificial geneticamente modificada que seja pelo menos tão barata, saborosa e saudável como a carne de animais abatidos, de criação agro-industrial — em que o argumento moral desempenha um papel de sustentação modesto. É certo que continuamos a ter de superar o factor «ai que nojo». Mas quando se tornarem comercialmente disponíveis produtos de carne em cultura, sem crueldade, o factor «ai que nojo» deverá na realidade favorecer a carne de cultivo — dado que a carne proveniente de animais de criação agro-industrial não só é moralmente repulsiva como fisicamente repulsiva também.

Todavia, esta transição não é suficiente. Mesmo a hipotética adopção à escala mundial de uma dieta sem crueldade deixa intocada uma fonte imensa de sofrimento. Aqui exploraremos uma das questões mais espinhosas: o futuro daquilo a que os biólogos chamam predadores estritos. Pois o projecto abolicionista parece inconsistente com um dos nossos valores contemporâneos básicos. A necessidade de conservação das espécies é tão axiomática que uma subdisciplina científica explicitamente normativa, a biologia da conservação, existe para a promover. Na era moderna, a extinção de uma espécie é normalmente explicada como uma tragédia, especialmente se essa espécie é um vertebrado proeminente em vez de um obscuro escaravelho. No entanto, se queremos realmente um mundo sem sofrimento, quantas formas de vida darwinistas podem ser conservadas na aparência que têm hoje? Qual deveria ser o destino último de espécies icónicas como os grandes carnívoros? Verdade, apenas uma minoria das espécies da Terra são predadoras carnívoras: as leis fundamentais da termodinâmica implicam que onde quer que haja uma «troca de energia» entre um nível trófico e outro há uma perda significativa. Na sua maioria as cerca de 50 000 espécies vertebradas do planeta são vegetarianas. Mas entre a minoria de espécies carnívoras encontram-se algumas das mais bem conhecidas criaturas do planeta. Dever-se-ia permitir que estes assassinos em série continuem a predar indefinidamente outros seres sencientes?

Algumas formas de extinção são quase universalmente aplaudidas mesmo hoje. Assim, o desaparecimento do vírus da varíola em estado natural não é de todo lamentado, embora persista a controvérsia sobre se as duas últimas cópias patogénicas Variola sob custódia humana deveriam ou não ser destruídas. O vírus poderia ser recriado a partir do zero se necessário. Tecnicamente, os vírus não estão vivos, uma vez que são incapazes de replicação independente. Porém, o mesmo acolhimento será alargado à extinção de grande número de patogénicos bacterianos que causam doenças humanas se pudermos planear a sua erradicação tão eficientemente como a das duas variantes de Variola que causam a doença conhecida como «bexigas». De igual modo, o extermínio dos cinco tipos de parasitas protozoários do género Plasmodium que causam a malária seria quase universalmente aplaudido; em média, morre uma criança humana de malária em cada doze segundos. Dependendo da teoria definitiva da mente que defendamos, os protozoários têm ou zero consciência ou um grau mínimo de consciência. Seja como for, não faz sentido, ou pouco sentido faz, falar literalmente no «interesse» do plasmódio. Só figurativamente se pode dizer que os espécimes de plasmódio têm interesses. Estes só têm importância na medida em que a sua existência afecta o bem-estar de seres sencientes. A nossa reverência pela diversidade da vida tem os seus limites. Mais complicados do que o plasmódio são os vermes parasitas, os gafanhotos ou as baratas, que quase de certeza têm pelo menos consciência limitada. Porém, essa consciência é ainda assim comparativamente fraca, quando a comparamos com a dos vertebrados. As baratas têm sistemas nervosos descentralizados. Consequentemente, presume-se que carecem de um campo experiencial unitário. Isto não equivale a dizer que se deveria sempre ferir gratuitamente as baratas. Talvez os seus gânglios nervosos constituintes em segmentos individuais tenham experiência de dores agudas; as baratas mantêm aptidões de aprendizagem rudimentares e conseguem viver até uma semana sem cabeça. Contudo, se as 4000 espécies de baratas no mundo não mais sobrevivessem para lá de um punhado de viveiros, a sua ausência em estado selvagem não seria considerada uma grande perda em qualquer versão plausível do cálculo felicífico. Tão-pouco o seria a extinção dos enxames de gafanhotos que conhecemos como pragas de locustas. Um enxame de 50 biliões de locustas pode, teoricamente, comer 100 000 toneladas de alimento por dia. Cerca de 20% da comida cultivada para consumo humano é devorada por insectos herbívoros. Um mundo futuro verdadeiramente utópico não teria sequer minúsculas crises de fome de insectos e os seus recursos computacionais poderiam microgerir o bem-estar dos mais humildes artrópodes — incluindo os aproximadamente 10 quintiliões (1018) de insectos da Terra. Entretanto, temos de estabelecer prioridades. Numa ética neobudista ou utilitarista, o critério de valor e estatuto moral é o grau de senciência. Num mundo darwinista, o bem-estar de alguns seres depende de fazerem mal a outros. Pelo que a início não há como evitar compromissos desagradáveis à medida que abrimos caminho para sair da vida darwinista. A investigação tem de se centrar nos modos de minimizar a fealdade da era transicional.

Mais controverso do que o caso das ténias, baratas ou locustas seria reprogramar ou descontinuar as serpentes e crocodilos. As serpentes e crocodilos causam inumeráveis mortes hediondas no mundo diariamente. São também parte da nossa paisagem conceptual familiar graças aos filmes, zoológicos, documentários televisivos, etc. — embora a tolerância descontraída das suas actividades seja mais fácil no confortável Ocidente do que para, digamos, uma mãe indiana de luto, que perdeu o filho por causa de uma mordedura de serpente. As serpentes são responsáveis por mais de 50 000 mortes humanas por ano.

A mais controversa de todas, contudo, seria a extinção — ou modificação comportamental por via genética — de membros da família dos felinos. Concentraremos a nossa atenção aqui nos felinos em vez de nos casos «fáceis» como as ténias parasitas ou as baratas por causa do estatuto único dos membros da família dos felinos na cultura humana contemporânea, como animais de estimação / companhia e como os nossos emblemas romantizados da «vida selvagem». Na sua maioria os humanos contemporâneos têm uma forte preferência estética favorável à continuidade da sobrevivência dos felinos. A sua existência no modo presente é talvez o maior desafio ético/ideológico para o abolicionista radical. Pois a nossa cultura glorifica os leões, com o seu estatuto icónico como Rei dos Animais; admiramos a graciosidade e agilidade de uma chita; o tigre é um símbolo de força, beleza e agressão controlada; a pantera é negra, veloz e elegante; etc. Inúmeras empresas e equipas desportivas utilizaram um ou outro dos grandes felinos nos seus logótipos como símbolos de virilidade e vigor. Além disso os gatos da variedade doméstica são o arquétipo do animal doméstico. Estima-se que a população mundial de gatos domésticos se aproxime dos 400 milhões. Romantizamos as suas virtudes e perdoamos os seus pontos fracos, em particular a sua maneira brincalhona de atormentar ratos. Na verdade, em vez de ser objecto de horror — e compaixão pelo rato — o tormento dos ratos transformou-se em entretenimento estilizado. Daí os desenhos animados de Tom & Jerry. Por contraste, o discurso sobre a «eliminação» da predação pode parecer sinistro. O que significaria na prática a «descontinuação» ou «reprogramação» dos predadores? De um modo sobremaneira inquietante, tais termos são evocativos do genocídio, não da compaixão universal.

As aparências iludem. Para compreender o que realmente se passa na predação, comparemos a nossa atitude perante o destino de um porco ou uma zebra com a nossa atitude perante o destino de um organismo com o qual aqueles animais nonumanos** são funcionalmente equivalentes, tanto intelectualmente como na sua capacidade para sofrer, nomeadamente uma criança entre 1 e 2 anos. Naquelas raras ocasiões em que um cão mata um bebé ou criança entre 1 e 2 anos, o ataque é notícia de primeira página. O cão agressor é subsequentemente abatido. De igual modo, os leões em África que se tornam devoradores de homens são perseguidos e mortos, independentemente do seu estatuto de animal protegido. Isto não sugere que os leões — ou já agora, cães vadios — são moralmente culpáveis. Mas por consenso tem de se impedir que matem mais seres humanos. Por contraste, o espectáculo de um leão a perseguir uma zebra aterrorizada e depois a asfixiar a sua vítima pode ser mostrado na televisão como entretenimento nocturno, um programa edificante mesmo para crianças. Em que medida é este paralelo relevante? Bom, se a nossa teoria do valor aspira a uma perspectiva do observador divino, despida de preconceitos antropocêntricos injustificados, à maneira das ciências físicas, então o bem-estar de um porco ou uma zebra tem inerentemente tanta importância como o destino de um bebé humano — ou qualquer outro organismo dotado de um grau equivalente de senciência. Se somos moralmente coerentes, então ao mesmo tempo que adquirimos poderes semelhantes a poderes divinos sobre as criaturas da Natureza, devíamos adoptar medidas análogas para garantir o seu bem-estar também. Dada a nossa inclinação antropocêntrica, pensar nos vertebrados nonumanos não só como equivalentes em estatuto moral a bebés ou crianças, mas como se fossem bebés ou crianças, é um exercício útil porque nos ajuda a corrigir a nossa falta de empatia por seres sencientes cuja aparência física é diferente da «nossa». Eticamente, a prática de «antropomorfismo» inteligente não deveria ser evitada como incientífica, mas aceite na medida em que aumenta a nossa capacidade atrofiada para a empatia. Tal antropomorfismo pode ser um valioso correctivo para as nossas limitações cognitivas e morais. Isto não é um apelo a ser sentimental, apenas à benevolência imparcial. Tão-pouco é um apelo a tomar «partido» entre predador e presa. Os assassinos em série humanos que predam outros seres humanos têm de ser presos. Mas em última análise, é vingativo culpá-los moralmente em qualquer sentido fundamental pelo destino das suas vítimas. O seu comportamento é sobreveniente às leis fundamentais da física. Tout comprendre, c’est tout pardonner. Contudo o mesmo princípio aplica-se também aos assassinos em série nonumanos.

Parasitas, Predadores e Assassinos em Série

A sufocação induz um sentido de pânico extremo. É uma experiência comparativamente rara na vida humana contemporânea, embora a síndrome de pânico, uma síndrome de ansiedade caracterizada por ataques de dor severos recorrentes, é extremamente desagradável e muito comum. Seja qual for a sua causa, a experiência de sufocação é horrível. Sente-se como se os pulmões fossem rebentar a qualquer momento. Há uma perda de controlo das funções corporais. Não há «mecanismo de controlo» psicológico, apenas um medo voraz, como foi testemunhado pelos efeitos traumáticos da tortura por simulação de afogamento praticada pela CIA; as pilhas de cadáveres emaranhados das vítimas das câmaras de gás nazis, agarrando-se freneticamente umas às outras para sorver os últimos vestígios de ar respirável; e a morte agonizante de milhões de herbívoros todos os dias no mundo selvagem.

Seria uma feliz ocorrência se a experiência de sufocação fosse fundamentalmente diferente nos animais humanos e nonumanos. Esta esperança vã poderia realizar-se se o modelo da consciência, intuitivamente apelativo, do «interruptor gradual» fosse defensável — e o grau de consciência de um organismo estivesse fidedignamente correlacionado com o seu grau de inteligência. O modelo do interruptor gradual leva-nos a supor que a asfixia lenta é significativamente menos horrível para uma zebra do que para um ser humano. Ingenuamente, imaginamos que a asfixia dos nossos primos vertebrados é apenas muito desagradável para as vítimas em vez de insuportável para lá do que as palavras podem exprimir. Infelizmente, as nossas emoções nucleares são também os modos mais intensos de experiência consciente; e as estruturas neurais que mediam tais modos primitivos de consciência estão entre os que foram conservados de um modo mais acentuadamente evolutivo. O medo intenso, a repulsa, a ira, a fome, a sede e a dor estão entre as mais poderosas sensações conhecidas. São filogeneticamente arcaicas. O prazer intenso, evidentemente, pode também ser vívido; mas não é no prazer que nos concentramos aqui. Em contraste com a fenomenologia das nossas emoções nucleares, a fenomenologia de episódios mentais «lógicos», seriais, no córtex pré-frontal distintamente humano é quase imperceptível, como atestam os estudos com microeléctrodos e introspecção dos nossos próprios episódios mentais linguísticos. Além disso, o problema é pior do que «apenas» a intensidade aguda do sofrimento. Os documentários sobre vida selvagem encorajam a noção de que a morte na Natureza é tipicamente rápida. Algumas mortes são na verdade misericordiosamente céleres. Muitas outras mortes são lentas e agonizantes. Só para sobreviver, os membros da família dos felinos em estado selvagem têm de infligir um sofrimento atroz aos mamíferos seus semelhantes. Ainda mais perturbante, os gatos domésticos atormentam milhões de pequenos roedores aterrorizados e aves todos os dias antes de os matarem — essencialmente para se divertirem. Os gatos não têm uma teoria adequada da mente. Não têm um entendimento compassivo das implicações daquilo que fazem. Para um gato, o rato aterrorizado com quem «brinca» não tem maior importância ética do que um guerreiro zombie massacrado por um adolescente que brinca com videojogos «violentos». Mas a ausência de malícia não serve de consolo ao atormentado rato.

Na sua maioria os habitantes modernos das cidades não perdem horas de sono por causa das crueldades da Natureza, ou sequer lhes dedicam mais do que uma atenção passageira. Implicitamente, parte-se do princípio que tal sofrimento não importa. Ou se importa, não importa o suficiente para que o mitiguemos ou abulamos. Porquê? A lista de razões à frente está incompleta mas é digna de nota.

  • A nossa suposta falta de cumplicidade devido à impotência. Ao longo da maior parte da história, a humanidade podia tanto contemplar a reordenação da cadeia alimentar como os humanos contemporâneos poderiam mudar, digamos, a constante de Planck ou a massa de repouso de um electrão. O que acontece na Natureza é tradicionalmente «apenas o modo como as coisas são»; pelo que não é culpa de ninguém. Dentro em breve, todavia, a persistência do sofrimento animal nonumano será da nossa responsabilidade directa — resta saber se renunciada ou aceite.

  • Uma concepção do mundo vivo baseada na televisão. A nossa perspectiva do mundo vivo é significativamente moldada por documentários sobre vida selvagem — e a estrutura narrativa proporcionada pelos seus comentadores em voz-off e a sua música ambiente edificante. Os documentários sobre vida selvagem são concebidos para servir de entretenimento, além de serem educativos. Oferecem um espectáculo de morte, violência e agressão de um modo que não mais se considera aceitável quando praticado com humanos. É a mesma razão por que durante centenas de anos os romanos desfrutaram a violência sangrenta do anfiteatro, e por que alguns humanos caçam animais nonumanos por «desporto». Um problema psicológico contemporâneo para muitas pessoas na vida quotidiana não é a dor ou a depressão mas o tédio, a falta de estímulos. A visão do conflito e da matança é excitante.

  • Realismo selectivo. Gostamos que os nossos filmes de guerra e terror sejam realistas — mas não demasiado realistas. De igual modo, não se espera que os documentários sobre vida selvagem representem toda a sordidez da vida darwinista, embora tivessem indubitavelmente um público considerável se o fizessem, como atestam os números de audiências no YouTube. A questão do «gosto» garante que as sensibilidades mais susceptíveis de um público televisivo mais amplo são poupadas à maior parte do horror ao mesmo tempo que continuam a se deixar entreter pelo drama. Alguns minutos de perseguição. A emboscada. A excitação da caçada. Um instantâneo de cinco segundos do leão com as suas maxilas na garganta da zebra. A seguir a câmara corta para um grupo de leões a devorar uma carcaça inanimada. Representações realistas da plena sordidez da predação são um tabu. Como David Attenborough outrora observou a alguns espectadores que se queixaram de que uma cena exibida era demasiado repugnante: «Vocês deviam ver o que deixamos no chão da sala de edição». Este texto sugere o horror, mas as palavras não o representam realmente. E mesmo o vídeo mais explícito não poderia evocar a realidade da experiência em primeira mão de ser desmembrado, estrangulado, empalado, afogado, envenenado ou comido vivo. O problema do sofrimento na Natureza aqui descrito é pior — e a sua prevenção mais moralmente urgente — do que supomos. Por exemplo, tente imaginar o que é morrer lentamente de sede ao longo de vários dias durante a época seca. Pode não haver um drama manifesto. É apenas subjectivamente horrível. Donde a obrigação ética sobre a espécie dominante de parar tais horrores tão cedo quanto adquirirmos o saber técnico para isso.

  • Insuficiências de empatia adaptativa. As reacções compassivas dos humanos são moldadas pela selecção natural. Geneticamente, é favorável à adaptação que os pais tenham experiência de uma reacção compassiva aos sentimentos das suas crias, mas inadaptativo sentirem compaixão pela «comida» das suas crias. A pressão selectiva pela empatia para com os membros de outras variedades ou espécies — ou rivais genéticos — varia entre fraca e inexistente, dado que tal empatia não promoveria o nosso sucesso reprodutivo — excepto na medida em que permitisse aos nossos ancestrais caçar e matar com maior êxito, ou vencer os inimigos pela astúcia. A mente/cérebro humana não foi concebida para se preocupar com o bem-estar de outros membros da nossa própria espécie para lá dos limites da própria tribo, muito menos de todos os outros seres sencientes. Tal empatia ocorre esporadicamente, mas foi seleccionada, e não seleccionada para; a sua existência é apenas o subproduto de uma adaptação que aperfeiçoa as aptidões do organismo. A discussão centra-se aqui nas insuficiências de empatia decorrentes do preconceito antropocêntrico; mas a insuficiência de empatia definitiva emana do preconceito egocêntrico. Coligações de genes egoístas regurgitam veículos cujos mundos virtuais egocêntricos não dão ao bem-estar de outros seres sencientes uma atenção imparcial. Talvez só clones (ou seja, gémeos idênticos, trigémeos, etc.) possam fazê-lo «natural» e fidedignamente.

  • As crueldades do mundo vivo são «naturais», logo são dignas de conservar: um preço que vale a pena pagar pelas glórias da Natureza. Este é o modo como as coisas devem ser, porque este é o modo como as coisas sempre foram. O preconceito a favor do status quo é endémico. Assim, simplesmente não parece ter ocorrido a alguns pensadores de contrário perspicazes em sociedades escravistas que a escravatura pudesse ser moralmente errada. Se a causa da liberdade humana universal lhes fosse apresentada, a ideia poderia muito bem ter parecido tão tola como questionar hoje a inviolabilidade da cadeia alimentar. Potencialmente, o preconceito a favor do status quo pode também assumir formas benignas. Se já vivêssemos num mundo livre de crueldade, a noção de reintroduzir o sofrimento, a exploração e criaturas a comer-se umas às outras pareceria não tanto assustadora como inimaginável — tão seriamente concebível como pensar hoje em regressar à cirurgia sem anestesia. Claro que não se deve exagerar a extensão do nosso preconceito a favor do status quo. Há algo na nossa própria experiência de dor intensa, enquanto dura, que se impõe como inerentemente mau; e em maior ou menor grau, podemos generalizar este sentido urgente de incorrecção a outros seres capazes de sofrer com que nos identificamos. Mas como na sua maioria os humanos não se encontram em agonia pela maior parte do tempo, quaisquer generalizações que façamos tendem a ser fracas; e de âmbito restrito devido à nossa ascendência evolutiva.

Extinção por oposição a Reprogramação

1) Extinção

Uma solução para as barbáries da predação consiste em usar indiscriminadamente a implantação contraceptiva subcutânea em carnívoros e permitir que os predadores se extingam rapidamente, gerindo os efeitos populacionais resultantes nas espécies «presas» por via de formas mais selectivas de implantação contraceptiva. Tais tecnologias de contracepção avançadas, controladas por computador, poderiam ser usadas selectivamente em zebras, búfalos, gnus, etc., de modo que os nossos parques naturais não fiquem superpovoados. A praticabilidade de semelhante gestão populacional mostra-se no uso de implantação contraceptiva, reguladora de fertilidade em elefantes machos que vivem no Kruger National Park de preferência à prática perturbadora do «abate selectivo». Na sua maioria os entusiastas humanos da vida selvagem preferem o uso da implantação contraceptiva como meio de controlo populacional, a matar famílias de elefantes; mas também consideram abominável a ideia da ausência de leões, mesmo nos nossos parques naturais. Isto poderá ser assim; mas a justificação da extinção selectiva não é absurda, mesmo se a rejeitarmos depois da devida ponderação. Porquê feiticizar formas de vida dotadas de uma tendência hereditária para predar e estrangular outros? Há que ser frugal no uso de analogias com o Terceiro Reich; mas por vezes são apropriadas. Vale a pena perguntar por que razão há uma comunidade com base na Internet que considera fascinantes os SS de uniformes negros e as suas insígnias — muito mais fascinantes do que, digamos, os pardacentos apparatchick do NKVD ou os esquálidos Gulag, ou o semi-esquecido genocídio dos arménios pelos otomanos. Se exercidos com estilo, o poder absoluto e a violência extrema intrigam-nos. Felizmente, o nosso fascínio por personificações sofisticadas do mal tem os seus limites: os SS imaculados são muito mais elegantes do que as suas vítimas a caminho da asfixia nas câmaras de gás; mas não os vamos preservar ou recriá-los literalmente excepto em filmes. É melhor que algumas formas de vida monstruosas sejam definitivamente banidas para os arquivos. De igual modo, o espectáculo de grandes predadores a caçar e asfixiar as suas vítimas aterrorizadas é mais visualmente apelativo do que o de herbívoros a pastar inofensivamente. Qual deles preferiria o leitor ver na televisão? Se há aqui uma emoção deslocada, reside na nossa feiticização*** dos fortes, elegantes e poderosos sobre os dóceis e vulneráveis.

Vale a pena sublinhar, repetidamente visto que a acusação é feita vezes sem conta, que esta indiciação dos predadores não é culpabilizar do leão [ou do gato doméstico] pelo seu comportamento. Primeiro, excepto pela engenharia genética ou aberrações naturais, os leões são carnívoros estritos. Segundo, não compreendem as implicações do que fazem. Qualquer leão mutante com uma teoria da mente capaz de sentir empatia pela sua presa seria rapidamente ultrapassado pelos leões «sociopatas». Excepto pela intervenção humana, um leão compassivo que rejeitasse a «lei da selva» morreria à fome. Consequentemente, também as suas crias. Os leões são «sociopatas» para com membros das espécies vítimas, tal como ao longo da história muitos humanos tiveram um comportamento sociopata para com membros de outras raças e tribos — embora a escravização tenha sido mais comum nos humanos do que o canibalismo. [«Nada suscita mais vigorosamente a nossa repulsa do que o canibalismo, porém causamos a mesma impressão aos budistas e vegetarianos, pois alimentamo-nos de bebés, embora não sejam dos nossos.» Robert Louis Stevenson.] De uma maneira ou de outra, a perspectiva da extinção para as formas de vida predatórias tem de ser levada a sério — mas não por moralismo ingénuo. O abolicionista empenhado pode a título provisório prever que daqui a séculos os leões não existirão fora dos arquivos digitais — tal como o vírus da varíola. Além disso, pode-se a título provisório prever que o mesmo destino se abaterá sobre os Homo sapiens ferinos. A capacidade condicionalmente activada de agir de maneira sanguinária e sexualmente agressiva foi geneticamente adaptativa no passado. Todos somos descendentes de assassinos e violadores. Assim os geneticistas afirmam que mais de 16 milhões de pessoas hoje podem descender de Gengis Cã. Mas previsão não é justificação.

Além disso, mesmo se — ao contrário do que aqui se argumenta — se acredita que os leões e as chitas são inerentemente valiosos exactamente no seu modo de ser actual, há ainda um custo de oportunidade para a sua existência — em que o custo de oportunidade é o valor da melhor criatura alternativa seguinte perdida em resultado de se preferir uma forma de vida a outra. Serão realmente os membros da família dos felinos formas de vida ideais? Num mundo de recursos finitos, apenas um pequeno espectro de fenótipos pode ter expressão dentre todo o espaço de estados abstracto de genomas possíveis. Suponhamos, como parece provável, que os (pós-)humanos em breve terão poderes semidivinos sobre que tipos de formas de vida e modos de consciência o mundo vivo sustenta. Os recursos ecológicos — e na verdade a própria massa-energia — serão ainda finitos. Se optamos por instanciar os leões, então a sua existência implica privar da vida outras espécies. De modo que julgar que os leões devem existir é afirmar que é melhor, num certo sentido, que deambulem na Terra máquinas de matar sociopatas em vez de herbívoros alternativos. Tomado literalmente, este argumento aplica-se também em última análise ao arcaico Homo sapiens. Estará o código fonte da nossa matéria constituinte e energia optimamente organizado? Ou seria o nosso ADN mais bem reconfigurado para codificar uma espécie de «anjos vivazes» bem-aventuradamente dotados de superinteligência? A diferença é que os humanos arcaicos muito provavelmente se extinguirão não por agência exterior, mas à medida que reescrevermos progressivamente o nosso próprio código fonte, reprogramarmos a «natureza humana» e abrir caminho para nos tornarmos pós-humanos.

2) Reprogramação

Alternativamente, deveriam os predadores carnívoros ser geneticamente «reprogramados» ou sujeitos a qualquer outra forma de modificação comportamental em vez de se permitir a sua extinção em estado «selvagem»? Pré-reflexivamente, tal reprogramação não é de todo impossível. Na prática, o saber técnico está provavelmente a algumas décadas de distância, se tanto. Pode-se ver antecipações da vida pós-darwinista mesmo hoje, ainda que ao nível individual em vez de na totalidade da espécie.

Um exemplo de tecnologia de gestão comportamental em funcionamento é a criação de ratos controlados remotamente («rato-robotas»). Eléctrodos implantados nos centros de prazer do cérebro de um rato podem fazer o rato seguir instruções pela sua própria volição, por assim dizer, pelo menos da perspectiva do rato. Os investigadores prevêem hoje que tais roedores aperfeiçoados poderiam ser usados para procurar minas terrestres ou vítimas (humanas) soterradas por terramotos. No futuro nada há que impeça semelhante tecnologia de ser amplamente instalada — juntamente com minicâmaras e dispositivos de localização GPS — em carnívoros predatórios para dissuadir a violência sociopata contra outras formas de vida sencientes. Na verdade, com o calendário de reforço correcto, o mais feroz carnívoro poderiam ser transformado num cidadão modelo dos nossos parques naturais. Com vigilância adequada e controlo computorizado, comunidades inteiras de ex-predadores poderiam ser discretamente orientadas nas normas de comportamento não violento. Nenhuma «inumanidade» estaria envolvida no processo de remodelação comportamental dado que em nenhum momento se estimula os centros de dor do cérebro. Tão-pouco o animal aumentado sequer tem experiência da sensação de ser feito agir contra a sua vontade. Sim, o ex-predador é «escravizado» aos seus circuitos de recompensa; mas também os humanos estão. [«Todos os homens procuram a felicidade. Nisto não há excepção. Por muito diferentes que sejam os meios que empregam, todos tendem para este fim. A causa de alguns irem para a guerra e de outros a evitarem é o mesmo desejo em ambos, visto de perspectivas diferentes. Este é o motivo de cada acção de cada homem, mesmo daqueles que se enforcam.» Blaise Pascal.] Na verdade, poder-se-ia administrar doses indefinidamente generosas de puro prazer a membros das espécies geridas em recompensa pelo seu comportamento «virtuoso».

Inversamente, pode-se manipular a biologia de membros das espécies «presas» para perderem o justificado terror que têm dos predadores presentemente. Mais uma vez, esta reconstrução parece tecnicamente intimidante. Porém relembremos como os roedores infectados com o protozoário parasita Taxoplasma gondii perdem os seus medos normais e na realidade procuram activamente território marcado com urina de gato. A farmacologia, os neuroeléctrodos e as tecnologias genéticas oferecem soluções possíveis para a patologia molecular do medo quando a sua persistência se torna funcionalmente redundante. A longo prazo, os mesmos tipos de enriquecimento hedónico, amplificação da inteligência e tecnologias de prolongamento da vida disponíveis aos humanos mais tarde neste século podem estender-se pela árvore filogenética. «A saúde é um estado de total bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade», afirma a constituição da Organização Mundial da Saúde. O projecto abolicionista alarga esta promessa formal de completo bem-estar físico, mental e social para lá da nossa própria espécie para (em última instância) abranger todos os seres sencientes. Qualquer extensão semelhante parece extravagante hoje. Também uma descrição dos cuidados de saúde humanos contemporâneos o pareceria há 200 anos. Está em causa o mesmo princípio ético. Contra-intuitivamente, a «lei dos retornos acelerados» da capacidade de processamento dos computadores significa que se poderia conseguir a transição para o bem-estar universal em décadas em vez de em milénios se existisse um consenso governativo humano — embora um enquadramento temporal de séculos pudesse ser mais conservador para os ecossistemas marinhos.

Outra previsão de como a reprogramação poderia funcionar encontra-se «naturalmente» em estado selvagem. Entre 2002 e 2004 uma leoa baptizada Kamunyak [«A Abençoada» em Samburuin] no Quénia Central adoptou repetidamente um órix bebé, pelo menos seis vezes, protegendo cada órix bebé de outros predadores, incluindo leopardos e leões famintos seus semelhantes. Kamunyak chegou a deixar que uma mãe órix se aproximasse ocasionalmente e alimentasse a sua cria antes de a afugentar. «A leoa tem de ter uma aberração mental», afirmou um representante da UNESCO em Nairobi. Em princípio, o comportamento hiperprotectivo de mamíferos eussociais como os leões poderia ser explorado em carnívoros geneticamente modificados para proteger membros de espécies de que presentemente são predadores. Neste cenário, uma reserva alimentar diária constante de carne de cultivo teria também de se proporcionar a menos que se fizesse intervenções genéticas mais radicais para alterar a fisiologia leonina existente. Hoje, a carne in vitro existe apenas como curiosidade laboratorial. Os produtos comerciais estão a uma década ou mais de distância. Mas a produção em massa de carne de cultivo para carnívoros «selvagens» ou domésticos deveria mostrar-se mais fácil do que criar texturas de carne geneticamente elaborada necessária para satisfazer os mais exigentes paladares humanos.

Os detalhes técnicos de semelhante programa são no mínimo obviamente estimulantes. A natureza tem poucas cadeias alimentares no sentido estrito; abundam redes alimentares complexas. Mas um ecossistema só pode sustentar aproximadamente cinco ou seis níveis tróficos entre os seus produtores primários efectivamente insencientes e os grandes carnívoros predatórios no topo da pirâmide trófica. Pois apenas cerca de 10% da energia de um organismo passa para o seu predador; o resto perde-se como calor para o ambiente. Pelo que os problemas da gestão compassiva de ecossistemas deveriam ser computacionalmente manejáveis num parque natural bem gerido. Acredita-se presentemente que toda a população de leões africana ronda os 30 000, de 400 000 em 1950. O número dos leões diminui rapidamente devido à perda de habitat e conflitos com os humanos. As restantes populações de leões estão amiúde geograficamente isoladas entre si. Pelo que os cruzamentos consanguíneos e a falta de diversidade genética aumentam. Fora dos zoológicos e dos parques «naturais», os leões em breve se extinguirão na ausência de intervenção humana, como por exemplo, o bioma mais rico em espécies na Terra, a floresta tropical perene ou sempervirente****, perde-se aproximadamente à razão de 2% cada ano. A reprogramação e a tecnologia de gestão comportamental podem garantir a sobrevivência civilizada de leões reformados e dos seus familiares para ecoturistas humanos apreciarem, se assim escolhermos.

Uma resposta crítica à perspectiva de reprogramar predadores carnívoros tem o seguinte aspecto. Um leão semidomesticado que não preda membros de outras espécies deixou de ser um leão genuíno. Os leões, pela sua própria natureza, matam membros de espécies presas (e por vezes hienas, chitas e outros leões). Sim, os leões matam as suas vítimas de maneiras repugnantes descritas como «bestiais» se levadas a cabo por humanos sobre humanos seus semelhantes; mas tal comportamento é perfeitamente natural se praticado por leões: é um aspecto do seu «fenótipo comportamental». O comportamento de caça é uma parte natural da essência da sua espécie.

No entanto aqui chegamos ao âmago da questão: a alegada força moral do termo «natural». Se qualquer criatura, pela sua própria natureza, causa um sofrimento terrível, embora não intencionalmente, é moralmente errado mudar essa natureza? Se um humano civilizado viesse a acreditar que ele/ela cometera actos que causaram uma dor angustiante por nenhuma boa razão, ele/ela parariam — e desejaria que outros agentes morais impedissem a repetição de tal comportamento. Poderemos supor que o mesmo se aplicaria a um leão, se o leão fosse moral e cognitivamente «edificado» de modo a compreender as ramificações do que fazia? Ou a um gato doméstico que atormenta um rato? Ou na verdade a um humano sociopata? Presentemente, a sociopatia em humanos não pode ser curada; mas várias intervenções, tanto genéticas como farmacológicas, foram debatidas. Quando a opção terapêutica existir, deverá o tratamento ser oferecido? Por ora, os sociopatas assassinos em série humanos têm de ser presos permanentemente. Uma «cura» que permitisse aos assassinos em série humanos tornar-se verdadeiramente seres pró-sociais, compassivos, iria de facto «destituí-los» da sua anterior identidade. Tal intervenção seria «coerciva», talvez não no sentido estrito, mas efectivamente se a alternativa é ser preso indefinidamente. O mesmo se aplica a agressores sexuais violentos reincidentes. Consideremos agora outra forma de comportamento em leões cuja prática por humanos significaria encarceramento para a vida. Um leão macho na maturidade está geneticamente programado para entrar num grupo, desafiar o macho dominante, e (se o macho invasor sair vitorioso) matar metodicamente as jovens crias do macho derrotado. Matar as crias do seu rival ajuda a maximizar a adaptação inclusiva do seu ADN. A sua mãe entrará então novamente no cio de modo que o macho invasor pode acasalar com ela e gerar as suas próprias crias. Cerca de um terço de todas as crias de leões que nascem perecem desta maneira. Felizmente, nada de tão mecanicista ocorre com os padrastos humanos e os enteados jovens. Mas estatisticamente, é imensamente mais arriscado ser criado como enteado do que por ambos os pais biológicos. Se houvesse intervenções terapêuticas que pudessem ajudar a suprimir sentimentos hostis da parte dos padrastos para com os enteados jovens, seria o seu uso desejável? Muitos padrastos, por exemplo, poderiam acolher com agrado a sua disponibilidade. Pessoas que de contrário são pais decentes podem ficar perturbados pelos sentimentos hostis que têm para com os seus enteados — ainda que a vasta maioria dos padrastos não aja sobre eles da forma extrema praticada pelos leões machos. O infanticídio é cruel independentemente da identidade da espécie do perpetrador. No futuro, as intervenções podem impedir a sua ocorrência nos nossos parques naturais mesmo ao preço de modificar os genomas «naturais» dos seus membros.

Um Estado de Bem-Estar Social Para Todas as Espécies?

"Aquele que mata um boi é como o que mata um homem"
Isaías 66:3

Durante o último século, foi introduzido nas sociedades da Europa Ocidental um estado de bem-estar social para humanos, de modo que os membros mais vulneráveis da nossa própria espécie não sofressem privações evitáveis. Mesmo em nações ocidentais ricas, a cobertura pode ser deploravelmente inadequada, em particular nos EUA. A provisão em países nações do Terceiro Mundo vai do excelente ao irregular ao quase inexistente. E pelos padrões da posteridade, todos os serviços de saúde contemporâneos presumivelmente parecerão rudimentares. Mas um compromisso com o princípio subjacente, pelo menos, está bem estabelecido: ninguém devia literalmente passar fome ou sofrer a morte ou enfermidade por doenças evitáveis. De igual modo, a educação universal é concebida para maximizar as oportunidades de vida para todos. Os cuidados de saúde universais procuram garantir que todos recebem tratamento médico. As organizações de apoio à criança intervêm quando crianças vulneráveis se encontram em risco de abuso ou negligência. Inicialmente, os darwinistas sociais repudiavam a introdução de semelhantes garantias; os eugenistas preocupavam-se em que um estado do bem-estar social permitiria que os «inaptos» procriassem e propagassem «maus» genes; os fundamentalistas do mercado livre preocupavam-se em como uma rede de segurança enfraqueceria hábitos de autoconfiança viril; etc. Porém a necessidade de pelo menos garantias sociais básicas parece hoje óbvia, embora persista a controvérsia acerca da sua natureza e extensão óptima — e financiamento. O darwinismo social na sua forma mais crua tem hoje poucos defensores além dos entusiastas de Ayn Rand. O problema não é só o de que a provisão do bem-estar social existente é inadequada: é também arbitrariamente especista. Em comum com o martírio de animais vulneráveis antes da sua introdução, o bem-estar de animais nonumanos vulneráveis depende sobretudo da caridade privada. Nenhumas garantias universais de bem-estar nonumano existem. A vivissecção, a abominação das quintas industriais e o massacre industrializado de animais nonumanos persiste sem obstáculos. Além dos nossos primos mais chegados, os grandes hominóides nonumanos*****, a extensão sistemática das garantias de bem-estar social a outras espécies «em estado selvagem», feitas cumprir pelo estado, parece uma opção demasiado rebuscada para gerar uma análise crítica sustentada. Proverbialmente, a caridade começa em casa; preocupemo-nos primeiro com a «nossa» espécie. Nenhum grande debate ideológico surgiu no caso a favor da reconcepção compassiva do ecossistema porque a causa a favor de se preservar o status quo ecológico é percepcionado como algo demasiado óbvio para que seja necessário defendê-lo; e o potencial transformador da biotecnologia, da infotecnologia e da nanotecnologia ainda mal se vislumbra. Tradicionalmente, é claro, a Natureza parece simplesmente demasiado Grande. Na medida em que se sentiu necessidade de qualquer justificação sequer para o sofrimento animal em estado selvagem, a narrativa usada para racionalizar as crueldades da Natureza afirmou que a predação dos doentes e fracos é para «o bem da espécie». Esta fábula não tem já sustentação científica. A selecção natural não funciona a esse nível. Além disso, é igualmente contrário ao darwinismo supor que há um abismo ontológico e ético fundamental entre «nós» e «eles», entre os primatas do género Homo e os animais nonumanos. Em qualquer ética universal, o uso inclusivo em vez de contrastivo de «nós» tem de abranger todos os seres sencientes.

Todavia, o obstáculo mais formidável à reprogramação de predadores e concepção compassiva de ecossistemas não é a ideologia mas o simples preconceito a favor do status quo. A maior parte dos argumentos elaborados contra a abolição do sofrimento em humanos nem sequer parecem funcionar quando aplicados a nonumanos. A angústia de membros de outras espécies não inspirará as suas vítimas a criar grandes obras de arte ou literatura, a edificar os seus caracteres, proporcionar contrastes interessantes, permitir oportunidades de crescimento pessoal, etc. É simplesmente repugnante e inerentemente sem sentido. À primeira vista, reprogramar o código fonte do resto do mundo vivo é em termos de computação, ordens de magnitude mais difícil do que reprojectar os humanos. Mas não se deveria exagerar a imensidade da tarefa. Pois os desafios técnicos de reprogramar animais nonumanos são mais fáceis de superar em alguns aspectos do que nos humanos. Assim um dos mais formidáveis obstáculos ao aperfeiçoamento temperamental sustentável em humanos não é a manipulação do prazer bruto — a implantação cerebral electrónica (wireheading) ou o speedballing poderiam fazer isso agora. O que é difícil é reprogramar os nossos circuitos de recompensa de modos que não comprometam a nossa responsabilidade social e desempenho cognitivo — não só em valores gerais dos géneros de destrezas registadas em testes de QI, mas aptidões mais subtis que envolvem a criatividade, compreensão empática, auto-compreensão introspectiva — e talvez também a capacidade de auto-questionamento fundamental donde podem surgir futuras revoluções intelectuais. Resumindo, o desafio reside em impedir os superfelizes de se tornarem ou «opiados» ou maníacos. Restrições semelhantes sobre a felicidade futura de animais nonumanos ou não se aplicam no mesmo grau ou não se aplicam de todo. A perspectiva de «leões de Soma» pode ser surreal; mas é difícil ver como se poderia julgar a sua introdução imprudente ou imoral.

É evidente que no ponto em que as coisas estão o projecto abolicionista é mais um esboço do que um projecto. Pelo que uma prioridade urgente é a criação de programas de investigação académica de modo que o estudo abolicionista possa tornar-se uma disciplina científica rigorosa. Tal disciplina não será isenta de valores; mas não será mais normativa do que a biologia da conservação — ou a medicina científica. Um aspecto crítico da reconcepção avançada de ecossistemas serão os modelos computacionais prévios — a procura exaustiva por efeitos secundários previamente não antecipados de intervenções em diferentes níveis tróficos na «cadeia alimentar». Os manifestos filosóficos podem ocultar dificuldades técnicas; as equipas de gestão de parques naturais precisarão de as confrontar. De um ou de outro modo, o abolicionismo tem de entrar no pensamento corrente académico e político, com estruturas organizacionais e grupos de advocacia com que competir. Um mundo livre de crueldade implicará a acção coordenada nacional, intergovernamental e das Nações Unidas a uma escala inédita.

Compreensivelmente, os cépticos podem rejeitar tais cenários como pura tecnofantasia. Os obstáculos sociológicos, ético-religiosos e ideológicos à concepção de um ecossistema planetário livre de crueldade podem parecer insuperáveis ainda que se reconheça a sua viabilidade técnica definitiva. Mas prever o crescimento de uma ética global anti-especista para complementar uma ética anti-racista não é tão irrazoável como parece à primeira vista. Considere-se os dogmas centrais das principais religiões do mundo. Até que ponto o projecto abolicionista é uma implicação disfarçada de alguns dos nossos princípios nucleares? Ahimsa, o termo sânscrito que significa «não fazer mal» (literalmente: evitar a violência — himsa) é central para a família de religiões originárias da antiga Índia: hinduísmo, budismo e especialmente o jainismo. Ahimsa é uma regra de conduta que proíbe matar ou ferir seres vivos. A reconcepção do ecossistema defendida aqui é essencialmente a expressão científica da ahimsa a uma escala global, despida da sua metafísica kármica. É verdade que a religião judeo-cristã e islâmica foram historicamente menos simpáticas aos interesses dos animais nonumanos do que as tradições não abraâmicas do subcontinente indiano. Através de grande parte da era cristã, o vegetarianismo na Europa Ocidental foi considerado uma heresia. A promessa bíblica de Deus do «domínio» sobre o resto do reino animal foi canonicamente interpretada como uma permissão divina para a dominação e a exploração. Porém «domínio» pode também ser (re)interpretado como responsabilidade pela administração. E se Isaías 66:3 [«Aquele que mata um boi é como o que mata um homem»] estiver correcto e o leão realmente puder deitar-se com o cordeiro? Será que um Deus compassivo quereria que preservássemos a biologia do sofrimento quando a sua perpetuação se torna opcional? Relembremos também que (com uma excepção) cada uma das 114 suras do Corão islâmico começa assim, «Alá é misericordioso e compassivo.» O nome de Deus usado mais frequentemente no Corão é «al-Rahim», que significa literalmente «o Todo-Compassivo». Qualquer sugestão de que a compaixão de Deus é ofuscada por comparação à imaginação moral de meros mortais pode parecer blasfema. Maomé o Profeta fala na necessidade da «compaixão universal». Segundo uma tradição (Hadith Mishkat 3:1392) Maomé ensinava que «todas as criaturas são como uma família de Deus»; e Ele ama mais aqueles que são mais beneficentes para com a Sua família.» À medida que a infotecnologia, a nanorobótica e a biotecnologia amadurecem — ou aceleram — talvez os eticistas religiosos e seculares tratem o máximo alívio do sofrimento como a pressuposição por defeito relativamente à qual se tem de justificar os desvios, não uma nova ética radical ela própria em busca de justificação. Em quase todos os cenários futuros, estamos destinados a «fazer de Deus». Portanto, procuremos ser deuses compassivos e fazer algo melhor substituir a crueldade da vida darwinista.

David Pearce (2009)
English & Spanish & German & Swedish
with many thanks to translator Vitor Guerreiro (see too 1, 2 and 3)


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